Pois foi à fazenda dos Pinheirinhos que veio ter um
dia o Fidêncio Silva, homem de grandes negócios, com casa matriz em Curitiba e filial em
Ponta Grossa. Havia muito já que não experimentava descanso daquela agitação comercial
em que vivia e a necessidade de um repouso prolongado tornara-se-lhe cada vez
mais patente.
Ora, Fidêncio Silva era parente afastado da esposa
de José Fernandes. Assim, logo que pensou em descanso, lembrou-se dos
Pinheirinhos, longe daquele bulício de transações e onde o clima não podia ser
mais saudável. E não tardou que estivesse a sorver em largos
haustos, com evidente contentamento, o ar puro e varrido da campanha
guarapuavana.
José Fernandes recebeu-o fidalgamente, como
costumava fazer para todos que traziam uma certa importância de
responsabilidades. Pôs os Pinheirinhos à disposição do seu hóspede pelo tempo
que desejasse: um, dois, três meses e mais se lhe aprouvesse. Ali teria plena
liberdade; quando não quisesse sair nas ocasiões de rodeio, poderia ficar em
casa, a uma sombra do pomar, folheando qualquer livro da sua biblioteca quase
totalmente agrária, mas que possuía, também, alguma literatura. E passeios
igualmente não faltariam: um dia voltearia um rincão; outro iria às terras de
planta, levando espingarda para espantar algum tateto; hoje faria uma caçada de
anta mais para o sertão ou sairia a passarinhar pelos capões; amanhã correria a
vizinhança, ouvindo prosa de caboclos; e até pescaria, se quisesse, poderia
fazer no Picuiry, três léguas sertão adentro. Dessa maneira não havia como não
corressem agradabilíssimos os trinta dias que Fidêncio Silva pretendia passar
nos Pinheirinhos. E assim foi.
Um domingo depois do almoço, saiu à caça com o
fazendeiro. Bem municiados, espingardas suspensas pelas bandoleiras ao ombro,
entranharam-se os dois por extenso e tapado capão, “querência certa de muito
veado, cutia e quati” - afirmava o José Fernandes.
Mas a sua asserção foi logo posta em cheque pela
evidência dos fatos: os caçadores não viam um só animalzinho que merecesse
chumbo grosso, embora já tivessem andado muito. Passaram então a sondar a
ramagem, na esperança de divisar algum pássaro de saborosa carnadura. Em certo
momento Fidêncio Silva parou e fez um sinal de silêncio ao companheiro. Depois,
engatilhou, apressado, a arma e firmou pontaria, visando a fronde de retorcida
guabirobeira. O fazendeiro procurou a caça, erguendo o olhar para a direção
indicada pelo cano da espingarda. Súbito, um tremor sacudiu-lhe o corpo, e, de
um pincho, esteve ele ao lado de Fidêncio Silva. Mas já era tarde: o rebôo do tiro
perdia-se molemente pelas quebradas da mata, soturno, a evocar tristeza naquela
quietude frouxa de um mormaço estonteante. A expressão condoída da fisionomia
do José Fernandes durou pouco e de todo desapareceu ao ruflar das asas ligeiras
esgueirando-se assustadiças por entre as tramadas franças. O atirador errara o
alvo e, boquiaberto, todo interrogação, estacava os olhos no fazendeiro, que,
ainda com a mão no cano da arma, que pretendera desviar antes do tiro partir,
desafogava um longo suspiro de satisfação.
- Meus parabéns!, foram as primeiras palavras de
José Fernandes, entre irônicas e zombeteiras.
- Parabéns!?, exclamou, ainda mais intrigado, o
Fidêncio Silva.
- Então não merece cumprimentos o caçador que erra
tiro em gralha azul? Renovo-os: toque nestes ossos!
E estendeu a destra.
- Quero compreender as suas palavras, mas creia,
não posso atinar com o porquê de seu
arrebatamento de há pouco. Não matar com carga de
chumbo um pássaro do tamanho dessa gralha, concordo que seja péssimo atirador;
porém...
- Não. Não o censurei por errar. Muito pelo
contrário: apresentei-lhe os meus sinceros parabéns.
Confundido, meio envergonhado, o Fidêncio Silva
confessou:
- O amigo tem, então, duas coisas para explicar-me.
- Uma só, uma só. Emendou logo o fazendeiro. Há
coerência entre as minhas palavras e a anterior atitude. Eu lhe conto tudo.
Sente-se aí nesse tronco caído e escute-me.
O negociante obedeceu maquinalmente. Depois tirou
de um lenço e pôs-se a enxugar o suor que lhe escorria pelo rosto, enquanto
que, largando o corpo preguiçosamente sobre a trançada grama, José Fernandes
foi falando assim:
- Era no inverno, quinze anos atrás. Havia muita
seca e o gado caía de magro. Certa tarde montei o cavalo e saí a costear
banhados e percorrer sangas, na esperança de salvar alguma criação que
porventura se atolasse ao saciar a sede. Levava comigo uma velha espingarda de
ouvido, que sempre me acompanhava, porque naquele tempo não poupava
graxaim que encontrasse pelo campo, a negociar leitões e carneirinhos. Pois
bem, regressava para casa., vagaroso, o pensamento nos grandes prejuízos que a
seca estava ocasionando, quando vi um bando de gralhas azuis descer à beira de
um capão, entre numeroso grupo de pinheirinhos. Para afugentar, ainda por
pouco, a minha tristeza, acrescida pelo fato de ter naquela volteada encontrado
mais duas reses estraçalhadas pelos corvos, resolvi dar caça àqueles
animaizinhos. Aproximei-me cauteloso, apeando a respeitosa distância. Não muito
longe, deti-me à sombra de um pinheirinho e contemplei, por instantes, o bando.
Eram poucas as gralhas, e notei que revolviam o solo com o bico. Fazer pontaria
e puxar gatilho foi obra de um momento. Mas, ai! Que horrível o segundo que se
lhe seguiu: a espoleta estraçalhou-se e vários estilhaços, de mistura com resíduos
da pólvora, vieram dar em cheio em meu rosto. Tonteei, bambearam-se-me as
pernas e caí sobre a macega.
Quanto tempo estive desacordado, não lhe sei dizer.
Antes, porém, de recuperar os sentidos, quando o sol já se encobria por trás da
mata, um pesadelo fabuloso, qual uma história de fadas, gravou-se-me na
memória. Revi-me de arma em punho, pronto para fazer fogo. Quando o fiz,
iluminou-se o alvo e, aberta as asas brilhantes, o peito a sangrar, veio ele de
manso, se achegando a mim. Os pés franzinos evitavam os sapés esparsos pelo
chão e o andar esbelto tinha qualquer coisa de divino. Dardejante o seu olhar,
estremeci ante aquela figura de ave e deixei cair a arma. Estático já,
estarreci ao ouvir os sonoros e compreensíveis sons que aquele delicado bico
soltava naturalmente. Dizia a gralha: “És um assassino! Tuas leis não te
proíbem matar um homem? E quem faz mais do que um homem não vale pelo menos
tanto quanto ele? Eu, como humilde avezinha, entoando a minha tagarelice
selvagem como o marinheiro entoa o seu canto de animação na véspera de praticar
seus feitos, faço elevar-se toda essa floresta de pinheiros; bordo a beira das
matas com o verdor dessas viçosas árvores de ereção
perfeita; multiplico, à medida de minhas forças, o madeiro providencial que te
serve de teto, que te dá o verde das invernadas, que te engorda o porco, que te
locomove dando o nó de pinho para substituir o carvão-de-pedra nas vias
férreas. E ignoras como eu opero!... Vem. Acompanha-me ao local onde me
interrompeste o trabalho, para aprenderes o meu doce mister. Vês? Ali está a
cova que eu fazia e, além, o pinhão já sem cabeça, que eu devia nela depositar
com a extremidade mais fina para cima. Tiro-lhe a cabeça porque ela apodrece ao
contato da terra e arrasta à podridão o fruto todo, e planto-o de bico para
cima a fim de favorecer o broto. Vai. Não sejas mais assassino. Esforça-te,
antes, por compartilhar comigo nesta suave labuta.” A gralha desapareceu e eu
voltei à razão.
Levantei-me a custo e fui ter ao local escavado
pelas aves, uma das quais jazia com o peito
manchado de sangue, ao lado de um pinhão já sem
cabeça. Admirado, verifiquei a certeza da visão: mais adiante cavouquei com as
mãos a terra revolvida de fresco e descobri um pinhão com a ponta para cima e
sem cabeça.
O José Fernandes fez uma pausa e depois concluiu,
mal encobrindo a sua alegria:
- Aí está, caro Fidêncio, como vim a ser um
plantador de pinheiros. Quero valer mais que um homem: quero valer uma gralha azul!
Lendas Brasileiras / Câmara Cascudo. - Rio de Janeiro: Ediouro, 2000
Ilustrações de J. Lanzellotti